segunda-feira, 6 de maio de 2013

LINGUÍSTICA E GRAMÁTICA: VOCÊ ENTENDE A DIFERENÇA?




LINGUÍSTICA E GRAMÁTICA

Por Aldo Bizzocchi

Embora a linguística seja uma ciência com mais de cento e cinquenta anos de idade, ela é ainda pouco conhecida, não só pelo público leigo, mas também por boa parte do meio acadêmico. Muitos confundem a linguística com a gramática, por acharem que ambas tratam do mesmo objeto: a língua. Outros, adeptos da gramática tradicional, muito mais antiga que a linguística, veem nesta última uma ameaça à “pureza da língua”, por ser, segundo eles, uma disciplina por demais permissiva e tolerante com os “erros gramaticais dos falantes incultos”. Isso tudo demonstra que, ainda hoje, a linguística vive cercada por uma aura de desconhecimento e preconceito, fruto, sem dúvida, da ignorância geral sobre o assunto. Por isso, é oportuno falarmos um pouco sobre linguística e sobre gramática.
A gramática, tal qual a conhecemos hoje, foi criada no século IV a.C. (...) e foi definida como “a arte de escrever com correção e elegância” e tinha um caráter eminentemente normativo, isto é, era um conjunto de regras a ser seguidas por todos aqueles que pretendessem escrever bem. (...) Com o passar do tempo, a gramática fixou-se como a disciplina que determina quais formas da língua são corretas e quais não, sempre, é claro, do ponto de vista da linguagem tal qual é usada pelos falantes eruditos. (...) Se hoje a gramática da língua portuguesa recomenda ou até impõe certas construções (como fá-lo-ei ou dir-lho-ás, por exemplo) que o povo em geral absolutamente não usa, é em grande parte porque nossa gramática ainda se baseia no uso linguístico do século XVII. Por sua própria natureza, a gramática é uma disciplina normativa, isto é, que impõe regras e determina como se deve ou não falar ou escrever. Nesse sentido, ela não é uma ciência, pois não é sua função estudar e descrever a língua em si, tal qual ela é falada, mas sim estabelecer, segundo critérios às vezes bastante arbitrários, como os falantes cultos devem falar ou escrever.
Por outro lado, a linguística é uma ciência, surgida entre fins do século XVIII e princípios do XIX, cujo objeto de estudo é a linguagem verbal, isto é, a língua. Enquanto ciência, a linguística não se interessa pelo que a língua deve ser, mas sim pelo que ela efetivamente é. (...) Devido ao seu caráter científico, a linguística não recomenda nem proíbe este ou aquele uso da língua. Sua abordagem deve ser neutra, objetiva e imparcial, como convém a toda ciência que se preze (embora os espíritos mais esclarecidos saibam que neutralidade, objetividade e imparcialidade absolutas são metas impossíveis de ser atingidas, seja pela ciência ou por qualquer outra atividade humana, mas essa é uma questão extremamente complexa e vasta, que não discutirei aqui).
Por outro lado, sabemos que as sociedades ditas civilizadas são bastante complexas e heterogêneas, isto é, dividem-se em inúmeros grupos sociais, cada um com sua cultura, seu modo de vida e sua norma de linguagem próprios. Assim, para que haja intercomunicação entre esses grupos, é preciso que haja um padrão de linguagem comum a todos eles, padrão que chamamos de norma culta. Essa norma é a que se usa, por exemplo, nos meios de comunicação de massa (jornais, revistas, rádio, TV), e é por isso que todas as pessoas, em todas as regiões do país, pertencentes aos mais diversos grupos sociais, conseguem ler livros ou assistir televisão e entender o que estão lendo ou ouvindo. Sem a norma culta, não haveria intercomunicação e, consequentemente, relacionamento social entre os diversos grupos que compõem a sociedade, o que levaria à própria desintegração dessa sociedade.
(...) Entretanto, não há necessariamente conflito entre a linguística e a gramática, há antes interação entre as duas, pois um fato linguístico de uso generalizado pelos falantes de uma língua, e que, como tal, é objeto de estudo da linguística, acaba mais cedo ou mais tarde tendo seu uso prescrito pela gramática; por outro lado, aquilo que a gramática impõe como de uso obrigatório passa a ser em geral aceito e utilizado pelos falantes, tornando-se, pois, objeto da descrição linguística. Assim, a linguística e a gramática são na verdade disciplinas distintas, porém intimamente relacionadas, cada uma com seu papel plenamente definido, e nenhuma das duas interfere no campo de ação da outra. Não há, portanto, razão alguma para conflito, como pensam alguns.
Quanto à linguística, ela não é essa disciplina permissiva que “defende os erros gramaticais”, como diziam os gramáticos mais tradicionalistas. Nenhum linguista, em sã consciência, propugnaria o uso de palavras e expressões erradas — do ponto de vista da gramática normativa, bem entendido — na imprensa ou em textos formais em geral. Mas a linguística parte do princípio de que a norma culta, embora seja importantíssima, não é o único padrão linguístico existente, e na verdade a maior parte da população se comunica a maior parte do tempo em outras normas que não a norma culta. (Pense, por exemplo, que se você usar a norma culta, com todas as suas regras rígidas, para falar com o pipoqueiro ou com o varredor de ruas, eles provavelmente não o entenderão, ou, no mínimo, pensarão que você está querendo “botar banca” para cima deles.) Por isso, é preciso que exista uma ciência que estude a “língua real” e não apenas a “língua oficial”, caso contrário, estaríamos nos recusando a conhecer e a entender nossa própria realidade linguística e social. Além disso, o chamado “erro” gramatical é, na verdade, a prova da evolução da língua: foi graças aos “erros” gramaticais e de pronúncia cometidos pelo povo romano ao longo dos séculos que o latim se transformou no que hoje é o português, o espanhol, o francês, o italiano, etc. Assim, o estudo da linguagem popular nos ajuda a compreender a própria evolução das línguas com o tempo.

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